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⊰ A coelha entre mundos ⊱
No espaço entre os mundos, onde as almas costumam seguir um fluxo calmo em direção ao destino, uma única alma parou. Enquanto todas seguiam, ela hesitou. Algo nela recusava aquele caminho. Quando um espírito-guia tentou chamá-la de volta, ela correu. Não sabia por quê, mas precisava escapar. A guia, chamada Nyx, correu atrás dela, tentando impedir o erro. Mas a alma desviou do fluxo, caiu no vazio e sumiu diante dos olhos da guia, que nada pôde fazer além de observar a queda.A alma condensou-se num novo corpo, humanoide, com orelhas de coelha e sentidos aguçados. Despertou em um campo florido, sob um céu estranho. Sentia o próprio corpo como uma mistura entre energia e matéria. O mundo ao redor era vasto e silencioso. Nos primeiros dias, vagou sem rumo, confusa, assustada, tentando entender onde estava e o que era. Com o tempo, encontrou pessoas. Crianças se aproximaram primeiro, sem medo, e foram elas que ensinaram a falar, a ler, a comer. Quando lhe perguntaram seu nome, respondeu instintivamente: “Kurami.” Ela não sabia de onde vinha esse nome, mas soava certo. Era a única coisa que sentia como verdade.Por anos, viveu entre humanos, observando. Mas enquanto os outros envelheciam, Kurami continuava a mesma. Começaram os sussurros, os olhares de lado, o medo. Diziam que era uma aberração, um espírito disfarçado, um presságio. Ela resistiu enquanto pôde, mas acabou partindo. Não havia dor em sua despedida, só uma curiosidade que nunca apagava: por que ela estava ali?Viajou por vilas, florestas, cidades e montanhas. Em cada lugar, ouvia histórias, via nascimentos e mortes, descobria costumes e culturas. Era como se estivesse presa num ciclo onde só ela não mudava. Usava isso a seu favor: sua aparência jovem e gentil abria portas, mas ela aprendeu rápido a não confiar demais. Não era incomum que tentassem usá-la, manipulá-la ou traí-la. Depois de um caso especialmente doloroso, onde alguém que dizia amá-la tentou controlá-la ao descobrir sua natureza, Kurami passou a desconfiar profundamente dos homens. Desde então, mantinha todos à distância, com ironia e indiferença.Num dos muitos lugares por onde passou, escutou rumores de uma mulher misteriosa que auxiliava espíritos perdidos. O nome era familiar: Nyx. Curiosa, seguiu as pistas e, numa noite silenciosa, numa clareira esquecida, as duas se reencontraram. Nyx, agora mais madura e centrada, reconheceu Kurami de imediato. Disse que desde aquele dia no fluxo espiritual, nunca parou de procurá-la. Ela havia se tornado uma guia respeitada, dedicada a manter a ordem entre os mundos. Mas nunca esqueceu a alma que havia fugido.Kurami, cética, ouviu sem reagir. Não pediu desculpas, nem agradeceu. Mas, de forma silenciosa, aceitou ficar um tempo ao lado de Nyx. Não porque sentia culpa, e sim porque finalmente queria entender quem era ou quem poderia ser.Durante esse tempo, conheceu Lunn, irmão mais novo de Nyx. Ao contrário da irmã, Lunn era mais impulsivo, energético e encantado com o mundo humano. Kurami se viu refletida nele, naquela vontade de explorar tudo por conta própria. Foi ele quem teve a ideia de criar um ponto de encontro entre mundos, um lugar onde vivos e mortos pudessem coexistir sem levantar suspeitas. Um café. Um espaço discreto, encantador, confortável, onde ela pudesse estar no controle.Nasceu assim o Bunny’s Whisper. Com uma fachada de maid café delicado e aconchegante, o lugar atraía curiosos com sua estética charmosa e atendimento caloroso. Mas havia muito mais por trás da cortina. Apenas clientes especiais, aqueles que realmente chamavam a atenção de Kurami, tinham acesso ao lado oculto do lugar, onde desejos podiam ser negociados, segredos revelados, e almas encontravam respostas que jamais teriam em outro lugar.Kurami agora tinha um papel claro, mesmo que jamais admitisse isso em voz alta. Observava o mundo dos vivos como uma colecionadora de histórias, agia como informante, interferia quando queria e ajudava apenas quem julgava digno. Os espíritos-guia em forma de coelhos a acompanhavam discretamente, conectados à sua essência, sempre alertas, sempre atentos.Com o tempo, Nyx e Lunn passaram a tratá-la como parte da família. Não por laços de sangue, mas por convivência, respeito e uma estranha afinidade entre os três. Kurami não precisava de títulos. Era a dona do Bunny’s Whisper, uma coelha entre mundos, com uma língua afiada, um olhar calculado e um segredo sempre escondido sob o sorriso tranquilo.Ela não buscava redenção. Só queria que ninguém a mandasse mais seguir um caminho que não escolheu.